<$BlogRSDURL$>

segunda-feira, junho 28, 2004

A Imaculada Ascensão da Capela Oballe 

1 - Graças a França - não ao país, mas a José-Augusto -, posso datar o acontecimento com alguma probabilidade de certeza.
Foi em 1943 - era a guerra e eram Franco e Salazar - que - numa exposição de arte espanhola destinada a estimular uma amizade de fachada, com muitas suspeitas por baixo - um quadro de El Greco viajou até Lisboa. O Prado ainda andava com a colecção em bolandas, no rescaldo da guerra civil e, da Suíça, onde tinham exilado muitos dos tesouros dele, algumas obras regressaram a Madrid via Lisboa. Deve ter sido o caso do quadro em questão - uma "Adoração dos Pastores", já dos anos finais do pintor -, embora, para tal hipótese, já não me possa socorrer da segura erudição do citado José-Augusto França.
Do que me lembro - muito bem - é que a minha Mãe, que foi à exposição, voltou de lá apaixonada por Greco, que, pela primeira vez, viu em carne e osso. Comprou mesmo uma reprodução de dimensão razoável (embora muito mais pequena do que o original) num preto e branco acastanhado, que se fixou nas paredes da casa durante algum tempo. Quem era eu, lourinho e de calções, para dizer do meu gosto? Se, nesse mesmo ano o começara a formar, não eram admissíveis catarros à formiga. Mas lá que o quadro não me dizia grande coisa, era bem verdade, embora a Mãe me explicasse que lhe faltavam as cores e que Greco sem elas só por memória e para memória existia. Só que argumentos de autoridade (das autoridades que eu reconheço) sempre me puseram em respeito e, desde esse dia e dessa adoração, inscrevi Greco entre os pintores maiores.
Mais tarde, muito mais tarde, foi a minha vez de o ver ao vivo, no Prado ou no Louvre. E sempre tive sentimentos contraditórios. Aparentemente, o maneirismo heterodoxíssimo, a desproporção longitudinal das figuras alongadas (contavam-me que o pintor as pintava assim, por problemas na visão), o irrealismo colorista, a eventual marca de Bizâncio que lhe ficou da Creta natal, eram tudo coisas que o fariam facilmente meu. Mas a evidência de maneiras tão idiossincráticas que o tornam demasiado evidentemente singular sempre me impediu uma mítica comunhão de desvelos. A barreira só se desfez quando eu já usava barba e bigode e, em 1973, fui, pela primeira e única vez em vida minha, a Toledo. Perante "O Enterro do Conde de Orgaz", dobrei os joelhos tanto quanto os bispos que seguram o cadáver do conde.
Mas foi só o quadro, ou foi tê-lo visto com Ruy Belo, numa viagem que tenho tantas razões para recordar? Mas foi só o quadro, ou foi a associação que Proust estabeleceu entre ele e os raides de "zeppelins" no princípio da guerra de 14? Os rosas e os verdes pálidos, "faire apocalypse", "et je dis à Saint-Loup que, s'il avait été à la maison la veille, il aurait pu, tout en contemplant l'apocalypse dans le ciel, voir sur la terre, comme dans l'Enterrement du Conte d'Orgaz de Greco, où ces différents plans sont parallèles, un vrai vaudeville joué par des personnages en chemise de nuit". A Duquesa de Guermantes e o Duque "imemoráveis em pijama cor-de-rosa e roupão de banho". Era o Temps Retrouvé ou era Greco Trouvé?
Pensei muito nisso, quando visitei em 1999 a exposição "El Greco - Identidad y Transformacion" no Thyssen. Seguramente, muito da minha identidade passava pelo "Retrato de un Caballero Anciano" (suposto auto-retrato) do Metropolitan ou pela "Madalena Penitente" da colecção Arango, mas, por muito que me envergonhe dizê-lo, eu não me transformava olhando-os, como, olhando outros, tantas vezes me sucede.

2 - Mas nem por muito madrugar se amanhece mais cedo, como já tinha idade para saber.
Agora fui ao Prado sobretudo para ver aquele quadro de Elsheimer ("A Noite de Ceres") que já me deu tema para uma crónica (PÚBLICO, 7 de Maio de 2004). O quadro não estava lá, emprestado a Antuérpia. Preparava-me para rever Caravaggios e Serodines quando, logo à entrada, naquela cúpula de tantos desencontros-encontros, deparei com a exposição (visível até 19 de Setembro) em que, pela primeira vez em séculos (se é que alguma vez), se reuniu o conjunto que El Greco pintou entre 1608 e 1613 (cinco dos seis anos finais da vida dele) para a capela fundada por vontade de D. Isabel de Oballe, na Igreja de S. Vicente Mártir em Toledo.
A história da senhora - que só agora aprendi - merece ser contada, ou, pelo menos, resumida.
Filha de gente de pouco algo, emigrou para o Peru por volta de 1530, aí com vinte anos, ao que se diz para fugir à violência doméstica do pai e de um irmão ("de aborrida se fue a las Índias"). Por malas artes e bons feitos, tornou-se rica como Cresus. Casou duas vezes, do segundo com um fidalgote da Biscaia. Nem do primeiro nem do segundo matrimónio teve filhos. Voltou a Espanha, com o marido nº2, em 1557. Antes, fez testamento. O marido era herdeiro universal, desde que não se voltasse a casar, mas 50.000 ducados, quantia enorme, eram para a Igreja de S. Vicente de Toledo, onde queria ser enterrada. Com esse dinheiro "se aga en la dicha iglesia de San Bicente (...) un capilla con un altar (...) y en el dicho altar se ponga un retablo grande".
Morreu em Sevilha, em data desconhecida, e transladaram-na para a igreja da sua devoção em 1590. Só que o marido voltou a casar e teve um filho. Este recusou-se a largar o rico dinheirinho, alegando que ela o tinha gasto com os perus. Mas ninguém ganha contra a Igreja. De pleito em pleito - e duraram até 1604 - S. Vicente venceu o enteado, que o marido morreu em 1585. Em 1605, começou a construção da capela, ou seja, cumpriu-se a vontade da testadora. Para pintar o retábulo chamaram um genovês, hoje sumido nas brumas da memória, de nome Alessandro Semini. Só que Semini também morreu, e, em 1607, o Ayuntamento de Toledo confiou a obra a Greco, então com 67 anos.
Greco pintou para o altar-mor um óleo de 3 metros e 48 de altura, por 1,74 de largura, para as paredes laterais um S. Pedro e um Santo Ildefonso e para o tecto uma Visitação. Se a tela central, concluída em 1613, está em S. Vicente de Toledo desde esse ano, as outras telas, se acaso lá estiveram algum dia, de lá saíram por razões confusas e mal esclarecidas. Os santos foram para o Escurial, o fresco da abóbada, depois de muitas voltas e reviravoltas, está hoje em Dunbarton Oaks, no estado de Washington.
Aproveitando restauros, o Prado reuniu os santos e o retábulo, embora não conseguisse que os americanos emprestassem a Visitação. Sob a tal cúpula, foi-me possível ver o conjunto reunido, quase quatrocentos anos depois. Não sei o que D. Isabel teria pensado, mas conheço agora a imensidão do que ela nunca viu.

3 - Deixo os santos em paz, que se faz tarde e não foram eles que me transformaram.
E puxo-vos a mão para o retábulo enorme. Nossa Senhora a subir ao céu. Tanto assim parece que todos os historiadores de arte, até 1962, chamaram à tela "A Assunção da Virgem". Não se vê um anjo, de amarelo malva e asa negra gigantesca a empurrá-la para o céu, onde parecem esperá-la o Espírito Santo e miríades de anjos? Parece evidente. Mas, em 1962, um historiador inglês desconfiou do óbvio. Se era uma Assunção, onde estavam os apóstolos, que sempre figuram nela e nesta não estão? Se era uma Assunção, porque tem Maria os braços cruzados no peito, como se fazia (e sobretudo nesses tempos da Contra-Reforma) para a "tota pulchra". Se era uma Assunção, porque figuram, na parte baixa do quadro, todos os atributos das Ladainhas? E não duvidou. A tela não figura a Assunção mas a Imaculada Conceição. Desde então, todos os historiadores têm seguido esta tese e como "Imaculada Conceição" o quadro é hoje nomeado.
Seja. Mas, para mim, este quadro é a mais extraordinária representação que já vi de uma fusão entre os dois dogmas marianos.
Se olharmos para a parte de baixo - a que mais me estarreceu e transformou -, está lá, efectivamente, a iconografia da Imaculada Conceição: o grande ramo de rosas e açucenas junto aos pés do enorme anjo, um templozinho que figura o seguro porto da Porta do Céu, uma marinha ao fundo, com uma nau e uma caravela, uma fonte com uma estátua, um espelho. E, sobretudo, a mais espectral das visões de Toledo que Greco alguma vez pintou, como se toda essa simbologia, só decifrável como imagem e por imagem, tivesse, como única finalidade, desdobrar, como os planos paralelos do "Enterro do Conde de Orgaz", a esfera celestial da esfera terrena. Estamos no reino da visão interior, da espiritualidade. Ao sublinhar, mais do que nunca, todos os artifícios inerentes ao seu estilo, Greco, como bem notou Brown, enfatizou a distinção que separa a arte da natureza, e fez prevalecer a imagem como emanação do sobrenatural. É um delírio de irrealidade e simultaneamente um dicionário de símbolos. "Coitada desta nossa vida cega / Que anda apalpando pela névoa baça", para citar o Sá de Miranda da "Canção a Nossa Senhora".
Mas a névoa baça, a Virgem e o mistério a dissipam. A imensa composição serpentinada perde a névoa, a escuridão e o mar, à medida que subimos pelo anjo acima e nos acercamos da Virgem enorme, que preenche mais da metade superior da tela. Para trás - ou para baixo - ficam os tons escuros da noite, o malva das vestes do anjo, as casas fantomáticas. Para diante - ou para cima - é uma apoteose de encarnado, azul, branco e amarelo, que tornam a cor em centro de tudo e o centro em cor de tudo. Tudo parece subir, mas tudo está a descer. "Preservada e isenta de qualquer mancha do pecado original", a Virgem tanto é aquela que foi desde o primeiro momento da sua Concepção como aquela que subiu aos céus em corpo e alma, sem que nela - e só nela - essa distinção existisse.
Há Virgens assim nos mosaicos bizantinos. Na pintura ocidental só conheço esta. Através da "realidade naturalista", o que foi criado foi "uma realidade abstracta", "verdade onírica desmaterializada", como me lembro de ter lido algures.
Perante este quadro pasmoso - que "de toda parte venta" -, a "Virgem das Virgens" voa sem tempo nem espaço. "O sol vai-se e transmonta" para citar de novo Sá de Miranda. Ou, continuando a citá-lo, Greco "posto de giolhos" pôs na visão todo o olhar. "Tudo o mais são nadas."
Agora me calo, "dissimulando a vergonha e o dano".

P.S. - Nas próximas duas semanas - 2 e 9 de Julho - esta crónica não sairá.

João Bénard da Costa 25 de Junho 2004 in Público

quarta-feira, junho 23, 2004

A Poesia da Morte 

1 - Os meus avós paternos tiveram nove filhos, nascidos entre 1880 e 1900. Nada de excepcional, nesses tempos e no meio social que era o deles. Mais excepcional é que desses nove, oito tenham chegado a adultos, já que "isso de crianças morre muito" como dizia uma velha criada minha, também vinda desses tempos. Só um morreu no berço, aos seis meses, e sempre me fez confusão que me falassem desse bebé dos retratos, com o pomposo nome de Tio Mário. É indiscutível que era meu tio, mas nunca consegui ultrapassar a desproporção entre o grau de tio e os degraus onde ele nem sequer chegou a brincar. Coisas de crianças, para usar um plural abusivo, pois que dele não foram certamente.
Numa família tão dada ao culto dos mortos, falava-se pouco dele. Os quatro irmãos nascidos depois nunca o viram. Dos quatro mais velhos, dois nunca os conheci e os dois, que tios de verdade me foram, tinham, respectivamente cinco e três anos quando ele morreu de uma dessas mortes de que morriam os infantes de então, de uma dessas mil coisas que existiam para as meninas e os meninos morrer delas, para citar uma personagem de Oliveira ("O Passado e o Presente") que por acaso fui eu.
Falei de retrato, mas, em boa verdade, nem me lembro de ter visto algum. Se calhar, nunca foi fotografado, já que em 1888 não havia fotógrafos por maternidades (nem mesmo se nascia em maternidades) nem as máquinas para as tirar eram de uso doméstico.
Pelo contrário, muitos retratos vi, e com muitos convivi, do tio que depois dele morreu. Tinha 19 anos e morreu tuberculoso. Embora também fosse morte comum nesse ano de 1906, choraram-no como raríssimos terão sido chorados. O meu pai costumava contar do vexame que sofreu, quando uma senhora estrangeira (tinha que ser estrangeira) se insurgiu contra a imagem dele e do irmão mais novo (respectivamente, com dez e seis anos), cobertos de luto da cabeça aos pés, negrissimamente vestidos em tardes de Verão e de mar. Durante meses, eram severamente repreendidos quando riam. "Já te esqueceste?" E ele acreditava, culpabilizadíssimo, que era pecado esquecer. Muitos dos irmãos guardaram essa culpa e esse luto pela vida fora. "Somos uma família que sofreu muito", ainda me lembro de ter ouvido frequentemente, eu que nasci quase 20 anos depois da morte dele. A morte do tio de 19 anos continuava a ser a razão maior de tamanha dor, incessantemente alimentada e renovadamente ateada. "O teu tio Raul [era o tio Raul] fazia hoje 38 anos, se fosse vivo." "Faz hoje anos que morreu o teu tio Raul." Ainda hoje, quase no centenário da morte dele, sei de cor o dia em que ele nasceu e sei de cor o dia em que ele morreu.
Outro tio também não o conheci nunca. Era o mais velho, chamava-se José Pedro, como o pai, como o avô e como o bisavô, e morreu aos 60 anos, quando eu tinha quase seis. Mas não se atribua à minha tenra idade a falta de memória. A verdade é que, três anos antes de eu ter nascido, cortara relações com todos os irmãos (ou todos os irmãos cortaram relações com ele) como não podia deixar de ser por questões de partilhas ou, como hoje eu penso, por mal resolvidas questões de primogenitura. No estado em que as coisas estavam, não foi muito chorado nem em casa dos meus pais, nem em casa dos meus tios. Não me recordo de retratos nas salas. Ele e o recém-nascido eram os incessantes ausentes, contra a omnipresença do irmão Raul, que até deu nome a uma casa, casa das minhas perpétuas saudades.

2 - Bem ao contrário do meu pai, a morte nunca rondou nem a minha infância nem a minha adolescência. Morreram, é certo, dessas mortes a que chamamos naturais (como se morte alguma o fosse) tios-avôs e tias-avós, primos e primas velhas ou amigos da família. Mas eram mortes distantes, que nunca me fizeram chorar uma lágrima. Quanto muito, ou quando mais surpreendentes, davam origem a muitas noites e dias de conversa, com minudentes pormenores do antes e do depois. Os meus avós paternos morreram antes de eu nascer. O meu avô materno, tinha eu dois anos. E a minha avó materna morreu no fim do ano que começou com a primeira morte que me doeu a valer.
Foi, em 1957, tinha eu quase 22 anos, a morte da irmã mais velha do meu pai, a única que sempre foi solteira, a que herdou a casa sombria e imensa que fora dos meus avós - a Casa do Jardim do Tabaco - como herdou a casa da Arrábida, essa baptizada com o nome de Raul.
Nela vivia com uma tia, com uma irmã e com uma sobrinha, casa de mulheres, mas onde a ausência-presença masculina era figurada em imensas efígies. Quase tanto como a casa dos meus pais, ou como a casa da Arrábida, casa minha, pois que semanalmente a visitava, até à morte dela, semanalmente lá passava as tardes e semanalmente lá jantava, em jantares preparados para os meus gostos e pelo gosto que ela gostava de mim.
Contaram-me que, quando eu nasci, foi ela a primeira pessoa a pegar-me ao colo. Desde que a conheci, assumira a herança familiar, o lugar de zeladora de todas as memórias e a memória dela era familiarmente lendária. Dado que de coisas íntimas nunca se falava, ignoro porque não casou. Mas cedo lhe coube um papel sacrificial, que assumiu sem disfarces nem exibições. Aos vinte e poucos anos, foi ela quem acompanhou a doença e a agonia do irmão tuberculoso, como, mais tarde, acompanhou a de tios e tias que não tinham descendência directa. Mas se a morte a rodeou por todos os lados e se de mortes se rodeou, não lhe faltava um sentido de humor peculiar. Não me lembro de a ver rir - mais do que todos e todas, carregando lutos ancestrais - mas lembro-me que me fazia rir, com imagens cortantes para pessoas e situações.
Para além da família, não tinha vida social. Mas praticamente conhecia "toda a gente" e dessa "toda a gente" sabia as histórias todas, reais ou imaginárias. Por exemplo: eu falava-lhe dos meus colegas de liceu. Para todos os que tinham apelido, logo ela me dizia que devia ser neto de X, sobrinho de Y ou primo de Z. Eu, depois, ia perguntar ao dito cujo. Invariavelmente, este confirmava-me quanto ela me dissera. Como o sabia, foi sempre mistério para mim. Como mistério era que folheando esses enormes volumes, de capa azul e fechos dourados, que Rocha Martins consagrou a D. Carlos e a D. Manuel II, ela identificasse quase todos os retratos (e tantos eles eram) relacionando-os com vivos ou conhecidos, por coisas só por ela sabidas. Ainda hoje, quase todas as "petites histoires" de quem foi quem no fim da monarquia ou no princípio da república, com ela as aprendi, a ela as devo. Se bem me lembro, nunca viajou mais longe do que os Açores, no início da guerra de 14. Mas, ou com Júlio Verne ou com Ferreira de Castro, sabia tudo o que havia a saber sobre o vasto mundo.
Posso contar uma história vergonhosa? Pelo vosso silêncio - mais atónito do que nunca perante o que me deu para hoje - concluo que não têm objecções, até porque a história só é vergonhosa para mim e, mesmo assim, nos tempos em que me vou correndo, muito menos do que já foi.
Um dia, nessa casa do Jardim do Tabaco, onde estavam sempre a acontecer surpresas - e onde até havia uma porta, que dava para a rua, hermeticamente fechada, para impedir eventual acesso aos carbonários da primeira república - descobri, numa antiga escrivaninha, uma mola de segredos que fazia deslocar o armarinho central. Retirado este, descobri duas gavetas que ninguém suporia que lá estivessem (eu não suporia, pois que o expediente é useiro e vezeiro em escrivaninhas dessas). As gavetas estavam vazias, o que muito me decepcionou. Lembrou-se ela então de me incitar (eu devia ter 11 ou 12 anos, e também já tinha lido muito do Júlio Verne que nessa casa abundava) a esconder lá uma mensagem. Que mensagem? Surgiu então a ideia de uma "carta aos vindouros". Que desejei eu aos meus descendentes? Que já tivessem chegado a outros planetas e que já vivessem livres do espectro do comunismo. Não nos passava pela cabeça que os vindouros não tivessem que vindourar tanto como imaginávamos. Se acaso o segredo ainda existe e a carta ainda lá está, os meus netos a leriam como a antiguidade que é. Não foi no tempo da minha tia, mas foi no meu. O dom da profecia nunca foi o meu forte.

3 - A redacção vai longa e não merece nota alta. Sei-o bem, mas deixem lá que vezes são vezes e o revés é só meu.
Estava a pensar numa coisa e saiu-me outra. Nem sempre o mote obriga, embora aconteça que desabrigue. Só eu me sinto abrigado, com o gosto das castanha piladas a voltar-me à boca que já não as pode comer.
Volto às mortes que aqui me trouxeram. Essa minha tia, que vira casas feitas e casas desfeitas, e aguentou a pé firme muitos velórios, do tempo em que ainda não se mandavam defuntos para as igrejas e se morria em casa e não nos hospitais (e, em casa, ela morreu) conhecia, como raros, as ilusões que os efeitos dela provocam nos vivos. Nada como os pesares para aligeirar consciências. A paz dos mortos pesa-nos e, para sacudir esse peso, esses são os momentos ideais (pêsames vem de peso) para juras eternas de eterna remissão. Com a graça dos mortos, propomo-nos, Senhor, nunca mais pecar, como no fim dos actos de contrição. Amaremos os vivos como os mortos os não amámos. Inimigos reconciliam-se, ódios velhos repousam e nem espuma fica à superfície. Trocam-se promessas impossíveis de cumprir. Nada como um caixão para o renascimento da paixão. Os "dear ones" tornam-nos a todos queridíssimos, pelo menos até à missa de 7º dia.
Era tudo isso que ela resumia na expressão que dei por título a este artigo. Sempre que lhe contavam efusões dessas, ela que tantas vezes as havia conhecidas e tantas vezes verificara a sua fátua verdade, comentava com uma expressão bem dela: "A poesia da morte." E preparava-se para as duras prosas futuras, à hora da leitura dos testamentos.

4 - Porque será que me lembrei tanto dela e que tanto me lembrei dessa expressão nestes últimos dias? A porca da vida. A poesia da morte. E a terrível solidão - tão maior quanto mais acompanhada - daqueles que, num ápice, passam de uma a outra. E com a porcaria ainda agarrada à pele - ou à alma - recebem os arrobos poéticos dos que, na véspera e no dia seguinte, voltarão a ser como eram e quem eram. Porque - como se costuma dizer, finda a hora da poesia - a vida continua.

João Bénard da Costa 18 de Junho 2004 in Público

quarta-feira, junho 16, 2004

"Stiffelio" e o Pecado do Remorso  

1. Verdi em estreia portuguesa em 2004? À primeira vista parece incrível. Mas os mais verdianos saberão que quatro óperas de Verdi nunca se estrearam em Portugal. "Un Giorno di Regno" - a segunda ópera do compositor - estreada em 1840; "I Lombardi alla Prima Crociata" (1843), "Alzira" (1845) e "I Masnadieri" (1848). Podia ter sido qualquer dessas, obras de Verdi entre os 27 e os 34 anos (período para o qual se usou e abusou da expressão "jovem Verdi"), mas não foi. É que faltava uma quinta ópera, desaparecida durante mais de cem anos e que não é passível de inclusão no verde Verdi: "Stiffelio", estreada em Trieste em Novembro de 1850, cerca de um mês depois dos 37 anos do autor. Apenas quatro meses mais tarde, estreou-se o "Rigoletto". "Stiffelio" situa-se exactamente antes desta ópera e depois da "Luisa Miller".
Sabe-se que a ópera foi muito mal recebida (mas o mesmo sucedeu em 1853 com a estreia de "La Traviata" e conhecem-se as voltas que o mundo deu), sabe-se que houve inúmeros problemas com a censura (mas também os houve com "Rigoletto"). Como explicar que Verdi tenha deixado cair "Stiffelio" e se tenha mesmo oposto a uma segunda apresentação da ópera no Scala? Como explicar o desaparecimento do manuscrito? Nenhum mistério por aí além, pensou-se durante muito tempo. Irritadíssimo com os cortes da censura e com as alterações ao libreto original (de Francesco Maria Piave, seu colaborador regular entre "Ernani" e "La Forza del Destino", ao longo de cerca de 20 anos), Verdi (ou Verdi e Piave) decidiram "congelar" a ópera e repô-la em melhores tempos. Esses tempos pareceram chegados em 1857, quando a Ópera de Rimini lhe encomendou uma nova obra. Verdi pediu a Piave que "restaurasse" Stiffelio e apresentou Aroldo que, sob outro nome, contava a mesma história e cantava a mesma música. Não foi melhor sucedido. Apesar do acolhimento triunfal que Rimini lhe prestou, crítica e público manifestaram o seu desencantamento face ao que logo foi chamado "Stiffelio riscaldato". "Aroldo", estreada em S. Carlos a 25 de Novembro de 1860 (repetida em 1863), andou por aí, certo é que longíssimo do sucesso e da fama das outras óperas de Verdi dos anos 50 e 60. Não é necessário compará-la à santíssima trindade do "Rigoletto", do "Trovatore" e da "Traviata". Mesmo que o termo de comparação seja "Les Vêpres Siciliennes" (1855), "Simon Boccanegra" (na primeira versão, a de 57). "Un Ballo in Maschera" (1859), "La Forza del Destino" (1862) ou "Don Carlos" (1867), "Aroldo" sumiu-se. São Carlos, no século XIX bom barómetro para coisas dessas, reflecte-o. Os outros títulos sucedem-se, "Aroldo" ficou-se por duas temporadas.
Há quem diga que Verdi, supersticioso e com horror a fiascos ("la maledizione"), chegou a pensar numa terceira vez. Mas terceira vez não houve. Ou melhor, só a houve quando, em 1968 (após a descoberta de duas partituras em Nápoles), se deu a reposição moderna de "Stiffelio", em Parma. A saga da ópera não terminara. Em Viena, achou-se, nos anos 70, novo manuscrito. Com base nos três, se procedeu à edição crítica da ópera e a aplaudidíssimas novas produções no La Fenice (1985) no Covent Garden (1993) e no Met, também em 1993.
Foi esse "Stiffelio" que agora chegou a S. Carlos.
Dancei muito nos anos? Resumi erudição alheia, vária dela colhida no estudo de Luisa Cymbron, publicado no programa de Lisboa? É bem certo. Mas é ainda mais certo que este "Stiffelio", nada "riscaldato", me fez recuar aos anos 50, 60 e 70 do outro século, quando Lisboa bebia do mais fino. Um elenco, como o que foi reunido para esta estreia, a começar na "minha" Dimitra Theodossiou e a acabar em Mário Malagnini, passando - com que passada! - por Carlo Guelfi, já o não esperava ouvir em vida minha, em S. Carlos. Nele e na revelação de uma ópera que eu quase desconhecia, estão as razões de ser desta operática crónica.

2. Vou-me agora a mim, que me ponho sempre a jeito.
Quando Verdi se me revelou, coisa de há cinquenta anos (um "Otello" de 53, com Ramon Vinay e Tito Gobbi; um "Don Carlo" de 54, com Italo Tajo, Tito Gobbi e Giulieta Simionato, um "Ballo in Maschera", também de 54, com Tito Gobbi, Lucia Danieli e Elizabetta Barbato) nada existia em forma de disco ou em forma de S. Carlos, anterior ao "Rigoletto". As excepções eram o "Nabuco" (1842), o "Macbeth" (1857) e a "Luisa Miller" (1849) ou vá lá, para gente mais metediça em caixotes de 78 rotações, o "Ernani" (1844) e o "Attila" (1845).
Tive que esperar pelos anos 70, já eu tinha a idade que Verdi tinha quando compôs o "Stiffelio", para comprar e ouvir (ver nunca) as óperas do "jovem Verdi", por esses anos saídas em catadupa.
Cada uma delas me foi revelação ou reverdição, muitos anos antes dos anos compactos. Com a mania herdada do cinema e da "política de autor", comecei a fazer catálogos de temas recorrentes e a encontrar, em cada uma delas, as matrizes do Verdi maduro, que, para mim, nessa época, começavam no "Attila" e no "Macbeth" e não no "Rigoletto" ou no "Trovatore". "L'onda de suoni misticí", essa onda e esses sons que inauguraram o "Senso" de Visconti.
Não tenho tempo, nem espaço, para vos introduzir a esse catálogo ou sequer para o resumir.
Vou-me limitar a três temas que reencontrei no "Stiffelio".

3. O tema do nome.

Do "Rigoletto" ao refeito "Boccanegra" de 1881, não há praticamente ópera em que ele não esteja presente. Gualtier é o "caro nome" de Gilda, mas esse nome, que assim a fez palpitar, não era o de um estudante pobre, mas o de um disfarçado duque. Manrico só no final do "Trovador" descobre que o Conde de Luna, seu arqui-rival, era seu irmão e a identidade dele é o segredo e a vingança da velha cigana e a maldição da avó queimada viva. Mesmas ocultações, mesmas identidades trocadas no "Simon", no "Ballo" e em "La Forza del Destino", etc.
Pois bem: o Stiffelio titular da ópera que agora vi apareceu a Lina, sua mulher de perdição, sob o nome de Rodolfo Müller. Da primeira vez que ficam sós, após o triunfal regresso do pastor protestante, quando os temas da traição e da infidelidade já se infiltraram por todos os poros da música e das palavras, é por Rodolfo que ela o volta a chamar. A Theodossiou disse esse nome de maneira incomparável. E logo cantou: Rodolfo Müller: "Egli è il dolce nome / Col quale vi chiamai la prima volta." E, embora nada haja de comum entre a duplicidade de Lina (assim se chama a mulher de Stiffelio) e a ingénua pureza de Gilda, é, na diferença de nomes que está toda a diferença ("mai s'avvezza / a chiamarvi Stiffelio il labbro mio"). O desdobramento atinge o cume na prodigiosa cena da confissão. É já no terceiro acto, quando Stiffelio quer consumar o divórcio e pôr à prova o duvidoso amor de Lina. Esta decide-se a assinar o documento que consumava a separação. Mas, depois, dirigindo-se, não a Stiffelio, mas ao sacerdote Rodolfo que ele acabara de eliminar, ao homem do Evangelho, diz-lhe surpreendentemente (uma das muitas ousadias da ópera que a censura de 1850 cortou): "Ministro, confessatemi!" Stiffelio, atónito, pergunta-lhe o que ouvirá. E Lina responde-lhe: "Tudo aquilo que Müller não quis ouvir" ("Quanto Müller voluto udir non ha").
Para lá do escândalo, à época suscitado pelo perdão de um padre protestante a uma mulher adúltera pelo divórcio, pelos encontros clandestinos dessa mulher com o ex-amante, o que mais deve ter perturbado é a permanente dualidade (ou triplicidade) que Lina sempre confere ao marido. Ele é Rodolfo, o homem que amou e com quem casou ainda antes do início da ópera, ao tempo humilhado e desprezado; ele é Stiffelio, o herói regressado do mar e amado pelas gentes de Salzbach (onde se situa a acção): ele é o ministro de Deus, aquele que só perdoa "profissionalmente", quando, investido ou recordado da sua função sacerdotal, mas que, como marido ou como reaparição do antigo Rodolfo, nunca na verdade perdoa. Aquela mulher apaixonou-se por um nome e esse "dolce nome" evola-se na música. Nesse sentido, a primeira ária de Lina ("Questa misera tradita") é um prodígio de ambiguidade dramática.

O tema da mãe

Como Gilda, como Alfredo, como as Leonoras, Lina não tem mãe. Tem sido notada, analisada e psicanalisada, essa ausência permanente nas óperas de Verdi, por contraste com a presença fortíssima dos terríveis pais. A única mãe das grandes óperas de Verdi é Azucena, mas é a mãe que queimou o próprio filho e que adoptou um outro que por essa maternidade se perde.
Em "Stiffelio", mais uma vez, é o pai (Stankar) a figura dominante e todas as suas contradições se volvem contra a filha. Impõe-lhe o silêncio para salvar a honra da família, mas no cemitério é ele quem tudo revela, quando assiste ao aperto de mão entre o marido e o amante de Lina.
Ora, a esse cemitério, Lina fora não só para o encontro com Raffaele, como para rezar junto à campa da mãe. "Ella si pura!... ed io!..." Essa prodigiosa ária, em que se invoca aquela que, lá do assento etéreo onde subiu, pode alcançar o perdão para a filha, é interrompida pela chegada de Raffaele, aquele que um dia a fez feliz. E ambos invocam, antes da chegada do pai, o pecado do remorso.
E é esse pecado do remorso o terceiro dos temas recorrentes de Verdi, mas nunca, como em "Stiffelio", tão esmagadoramente dominante. Em torno dele, e do lugar que esse tema ocupa na obra dos românticos alemães e particularmente de Klopstock, se compreende o lugar fulcral que o "Der Messias" desse poeta ocupa na ópera, livro dos segredos de que só Lina tem a chave.
O "Messias" de Klopstock era aquele que viria curar a humanidade do remorso, apagando a culpa e reforçando a harmonia. Verdi rondou sempre esse pecado total, cerne da sua obra e da culminância dela. Por isso, todos os protagonistas de "Stiffelio", como os de Klopstock, são protagonistas do remorso. Nas vozes incomparáveis de Theodossiou e de Guelfi, foi esse o pecado sem expiação possível que atravessou estas inolvidáveis récitas. Obrigado, Paolo Pinamonti!

João Bénard da Costa 11 de Junho 2004 in Público

segunda-feira, junho 07, 2004

A Gravidade e a Graça 

1 - Antigamente, era lamúria de lavradores.
Todos os anos eram maus, sobretudo todos eram piores do que o ano passado, que já tinha sido péssimo. Agora, continuam a ser os lavradores - ao que parece, espécie em vias de extinção - mas também todos os que não são lavradores. Por exemplo, e para me acercar do meu terreno de hoje, os editores e livreiros.
Não há ninguém que não vos diga que "isto" é um "sítio" de analfabetos (até os analfabetos). Nunca se venderam menos livros, nunca se leram menos livros, etc, etc. À primeira vista, parece que têm carradas de razão. Basta entrar numa livraria (das raras sobreviventes, fora das muralhas dos "centros comerciais") à busca de um livro que não seja o último de Margarida Rebelo Pinto ou de Paulo Coelho. Ou nos respondem logo que não há ou está esgotado, ou nos fazem perder 20 minutos diante de um computador, em aparente e opaca pesquisa, para chegar à mesma conclusão. Sobretudo se o livro procurado for "velho" (por "velho" se entendendo tudo o que foi publicado há mais de seis meses). Pior ainda, se for um "clássico".
Pois, pois. Mas é igualmente certo, por razões misteriosas e plurilaterais, que é raro o mês que não se editam obras obnóxias, que aparecem e desaparecem vertiginosamente, sobretudo para a banda das traduções. Para além da minha própria experiência (e quantas boas surpresas não tenho tido!), verifica-se, de cada vez que faço a asneira de escrever, por aqui ou por ali, que saiu a primeira tradução portuguesa do livro de A ou de B. O meu correio de leitores aumenta logo, com editores a corrigir-me certeiramente, lembrando que A ou B já foram publicados por eles, em 1979, em 1987, em 1993 ou em 2001. Envergonhado, peço desculpa e vou à procura. Inútil procura. Levaram sumiço. A única hipótese é a Feira do Livro, mas mesma dessa me dizem que nunca correu pior. Quando me tentam pacientemente explicar o que sucede, a explicação foi ainda mais misteriosa do que o facto.
Mas hoje não venho para maledicências, antes para estimas. E estimei - estimei mesmo muito - quando o Jorge Silva Melo me disse que tinha acabado de sair na Relógio d'Água (numa colecção chamada Antropos) "A Gravidade e a Graça", tradução portuguesa de Dóris Graça Dias de "La Pesanteur et la Grâce" de Simone Weil. Simone Weil, finalmente em português (não ouso dizer que em vez primeira, mas é verdade que não me recordo doutras) neste ano de 2004? Bem verdade! Graças a Deus!

2 - Alguns portugueses conhecerão de nome Simone Veil, política francesa de certo destaque, que, sendo bem da direita, se celebrizou, enquanto ministra, por ter feito passar a lei que despenalizou o aborto em França e que é, "de certo modo, uma pessoa respeitável", como José Miguel Júdice disse que Álvaro Cunhal é.
Muitos menos conhecerão Simone Weil (1909-1943) que, de comum com ela, só tem o primeiro nome, um apelido parecido e a origem judia. O livro da Relógio d'Água não ajuda muito. A um curto excerto, na contracapa, do texto de George Steiner "Simone Weil's Philosophy of Culture" se reduz a informação disponibilizada. Nem prefácio, nem mais nada. Como se abundassem em Portugal os leitores para os quais "La Pesanteur et la Grâce" faça parte dos "encontros primordiais" e se conte entre esses "raros livros que nos pode acompanhar ao longo da vida".
Sucede - não desfazendo - que esse é o meu caso e que a descoberta de Simone Weil - lá volto eu aos anos 50 - marcou mesmo a minha vida. Por isso "aqui estou", como Jesus disse à criança, por isso fiquei feliz quando soube do caso e caso o é.
E jorraram em catadupa muitas e antiquíssimas memórias. Nos bons tempos da Morais e do "Círculo do Humanismo Cristão", do António Alçada e do Pedro Tamen, Simone Weil, santa da casa, foi convocada, como não podia deixar de o ser. Como me pediram a mim um livro sobre Mounier, pediram ao M.S. Lourenço - de todos nós, quem a conhecia melhor - um livro sobre Simone Weil, introdução à obra dela, com ampla antologia de textos.
O M.S. Lourenço fê-lo. Mas nem o António nem o Pedro gostaram do resultado. Se Simone Weil já não era muito ortodoxa - ela que se recusou a entrar na Igreja, permanecendo no limiar, imóvel, en "úpomoné" (na expectativa) "para assim ficar ao lado de todos os que não puderam entrar no receptáculo universal da Igreja" - M.S. Lourenço foi achado heterodoxíssimo. Já bastavam à Morais trapalhadas políticas com a Igreja. Trapalhadas teológicas (um famoso comentário ao Padre Nosso que "O Tempo e o Modo" publicou, oito anos depois, no caderno "Deus O Que É?") pareceram-lhes ultrapassar as marcas. O livro, chamado "O Possível e o Impossível", foi achado impossível. Ficou eternamente no prelo. Descobri agora, quando o pedi ao autor, para beber da fonte e para comparar a tradução dele com a de Dóris Graça Dias, que nem mesmo ele o tem. Eu, que julgava ter cópia do original, também não a achei. Quem sabe se existe traço desse primeiro coiso interrompido entre um português e Simone Weil? Talvez não. Perdemos tudo.
É certo - lembro-me agora, recuperada a memória ao correr da pena - que uns anos depois (1967, salvo erro) a Morais publicou dela "Opressão e Liberdade", em tradução de Maria Velho da Costa (eu não vos dizia que há sempre um antes da primeira vez?). Mas se é admirável obra, não o é ao plano de "La Pesanteur et la Grâce". Ou de "Atteinte de Dieu". Ou da "Lettre à un religieux". Esses, sim, os cumes do que abusivamente chamo a "teologia negativa" de Simone Weil.

3 - Chegou a altura de vos dizer um pouco quem foi Simone Weil.
Antes de se licenciar em Filosofia em 1925 (aos 16 anos) já a sua "excentricidade" e a sua cultura tinham dado que falar. Diz-se que, aos cinco anos, se recusava a comer açúcar porque os soldados de 1914 também o não comiam, como se diz que, aos seis, sabia Racine de cor. Não são só anedotas. O sofrimento do mundo e o mundo da cultura foram obsessões perenes dela. Professora de Filosofia, trocou uma carreira brilhante por um emprego humilhante numa fábrica de automóveis, para viver entre os operários. Teve um breve namoro marxista, mas, em 1932, já perdera as ilusões sobre o "paraíso soviético" e já achava que revolução era termo sem conteúdo algum. "O progresso, se se quiser falar em termos rigorosamente matemáticos, é uma regressão" e a classe operária não era portadora de salvação. Doentíssima, desde muito nova quase não comia, para saber, no corpo, o que era a fome.
Em 1936, juntou-se em Espanha a um grupo anarquista, mas o seu pacifismo proibiu-lhe combater e depressa se desentendeu com os novos companheiros. Foi então que veio até Portugal. Escreveu:
"O que eu sofri nessa ocasião marcou-me de uma forma muito particular e muito profunda, de tal modo que, ainda hoje, quando um ser humano qualquer, em quaisquer circunstâncias, me fala sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que há um engano, engano que, infelizmente, vai acabar. Desde a minha vida como operária, recebi para sempre a marca da escravidão, como a marca de ferro em brasa que os romanos impunham aos escravos mais desprezados. Desde esse momento, considero-me, também, escrava.
Foi nesse estado de espírito e num estado físico miserável, que cheguei, sozinha, numa noite de lua cheia, a uma aldeiazinha portuguesa muito miserável. As mulheres dos pescadores iam numa procissão, em torno dos barcos, com velas acesas, cantando cantigas certamente antiquíssimas e de uma tristeza lancinante. Nada pode servir para dar uma ideia. Nunca ouvi coisa alguma tão triste, excepto os cânticos dos barqueiros do Volga. Foi aí que tive, subitamente, a certeza de que o cristianismo é a religião dos escravos, a religião a que os escravos, ou eu ou os outros, se não podem recusar."
Data desse período (entre 1938 e 1940) a sua aproximação ao catolicismo, como desses anos data a maior parte dos seus escritos místicos e filosóficos numa produção teórica quantitativa e qualitativamente inacreditável, que alguns aproximaram de espiritualidade cátara e outros da ascese da patrística grega ("La Source Grecqe" é outra das suas obras maiores). Mas, de uma obra com 18 títulos (só reunida em edição definitiva em 1999), nada publicou em vida.
Fugiu de Paris quando os alemães chegaram, depois de escrever "Quelques reflections sur les origines de l'hitlerisme" e fixou-se em Marselha, onde dirigiu os "Cahiers du Sud". Recusou-se ao baptismo, para não se separar do povo judeu perseguido. Em 1942, fixou-se nos Estados Unidos, mas pouco se demorou, decidida a reunir-se à França livre em Inglaterra. Desentendeu-se também com os gaulistas. Tuberculosa, morreu aos 34 anos, num sanatório em Ashford.
O seu primeiro livro - justamente este que acaba de sair em Portugal - publicou-se em 1947.

4 - Foi nos anos 50, simultaneamente em França e em Inglaterra (Simone Weil foi dos raros pensadores franceses do século XX a conhecer enorme projecção em Inglaterra), que começou a fama dela, para a qual Graham Greene contribuiu poderosamente.
Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre "a truer liberty" e a "silent question", a que se referiu Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje.
Isso e aquilo a que ela chamou o "ateísmo purificador".
Gosto de terminar, citando o primeiro parágrafo do capitulo de "A Gravidade e a Graça", que tem exactamente aquele título. Onde ela diz o que dela mais tenho citado ao longo da minha vida e que transcrevo, por fidelidade e por gosto, na tradução de M.S. Lourenço:
"Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão."

João Bénard da Costa 4 de Junho 2004 in Público

This page is powered by Blogger. Isn't yours?