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sábado, dezembro 27, 2003

Uma Frincha Na Janela 

1 - O primeiro quarto da minha vida, que conheci e foi conhecido como quarto de mim, dava para um saguão. O Sol nascia nas traseiras do prédio desse quarto e bastante cedo passava por cima do dito saguão, iluminando-o vagamente. Quando eu acordava, sabia que era amanhã porque, no alto das portadas de madeira da janela que me ficava diante da cama (num pequeno espaço rectangular que a separava do tecto), em vez do escuro breu, se desenhava um pálido brilho, mais luminoso no centro, mais sombreado nos flancos. Posta a situação do quarto, a sombra era o que mais se dissolvia, mas a dissolução era tanta que por força havia de haver alguma luz, luz que só podia ser a luz do dia.
Quando acordava antes que me acordassem, ou quando estava doente, essa sombra era, literalmente, uma sombra de nino, como se chama a uma pessoa que persegue outra e não a larga. Mas nenhuma pessoa eu via. Via era uma orla marítima, com uma estreita tira de areia branca e um mar calmíssimo a perder-se no horizonte. E, do lado esquerdo, onde a zona penumbrosa era predominante, vinha uma montanha com a forma de uma ursa, repousando focinho e patas dianteiras no mar-chão. Demasiado bem conhecia essa montanha. Até pelo nome de Outão a conhecia. Não tinha dúvidas. Era a Arrábida que me vinha visitar em fotografia a preto e branco, ou em filme a preto e branco, porque a imagem se animava e nunca era a mesma pelo mesmo tempo. Nunca ninguém, crescido, me acreditou ou acreditou em tais visões. E, como mais ninguém partilhava esse quarto de criança, só em mim confiava para essa luminosa identificação. Visualmente, era uma visão pacificadora. Mas, às vezes, angustiava-me.

2 - Assim acontecia quando tinha mais febre. Mas também me acontecia, e por isso o evoco hoje, nas manhãs do Dia de Natal.
Naquele tempo, as crianças como eu não recebiam os presentes na noite da véspera. Os adultos escondiam cuidadosamente da nossa vista o que tinham comprado em nome do Menino Jesus (Pai Natal não existia ainda). Deitavam-nos, prevenindo que noite, muito noite, o Menino desceria pela chaminé da lareira da sala, para pôr as prendas nos sapatinhos que lá tínhamos deixado, antes de ir para a cama. Só as podíamos ver de manhã. E - não fosse o diabo tecê-las - avisavam-nos que ai de nós se quiséssemos entrar lá, antes de eles lá nos levarem, de manhã e nunca muito de manhãzinha, pois que pais deitam-se tarde e não se levantam cedo.
Pela calada da nossa noite, enfeitavam a sala e distribuíam por oito sapatos (éramos quatro, nessa altura) as compras do Menino. Depois, a casa levantava a âncora para a travessia da noite, como me lembro de ter lido em Gide.
Mas a excitação fazia-me (fazia-nos) acordar muito cedo. Logo que via o Outão diante de mim, percebia que a hora era próxima. Os minutos pareciam horas. Sombreados e luzeiros fixavam-se - como numa pintura - e não os via moverem-se. Se o Menino não tivesse vindo? Se não acontecesse nada? Terrível era a tentação de me levantar e ir espreitar, mas o medo da desobediência e do tabu tolhia-me. Houvesse uma Eurídice por perto, não sei se teria resistido. Mas, como já disse, não havia.
Até que a porta se abria e me chamavam, com inconfundível alegria. Na sala, rompíamos os quatro ao mesmo tempo e, por mais esperado que fosse, o milagre era, de ano em ano, maior. Tudo aquilo, tudo aquilo só para mim. E era tão forte que um ano houve em que perguntei à minha mãe como é que havia gente que não acreditava em Deus. A prova, irrefutável, era aquele maná caído do céu nos meus sapatos, coincidindo quase exactamente com tudo quanto eu tinha pedido.
Depois, muito depois, chegou o tempo de eu fazer de Menino Jesus para os meus filhos e depois, muito depois, o tempo de, obrigado pelo tempo deles, fazer de Pai Natal para os meus netos. Mas sempre que vejo as crianças precipitarem-se para o monte de embrulhos, maravilhosos e maravilhados, repete-se-me a antiquíssima questão e a antiquíssima certeza. A manhã de Natal de outrora, a noite de Natal de hoje é a prova da existência de Deus.

3 - A mais absurda das provas? Obviamente, não vou argumentar. Mas já me apeteceria discutir, se será mais absurda que as chamadas "provas racionais", nomeadamente as dos santo de Aquino. Sosseguem que não vou por aí.
Apetece-me continuar em registo mágico, que é o registo destes musgos e destes presépios, destas palhinhas e destes reis. Sophia contou-me ("Os Três Reis do Oriente") que Gaspar, Belchior e Baltazar viram a estrela que "mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria". E reconheceram-na logo "porque ela não podia ser de outra maneira". Quem reconhece a alegria das crianças, como quem vê a "carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência", não pode conhecer e reconhecer estas coisas sem Te ver. "Como poderei suportar o que vi se não te vir?" É o oposto e é o mesmo.
E tão desarrazoadamente como até aqui - mas poderá a razão ter razão em tão trémulas paragens? - eu sei do Natal quando vejo alguns rostos humanos, alguns olhos humanos. Diz-se que, até aos trinta anos, cada um tem a cara que Deus lhe deu, e, depois dos trinta, cada um tem a cara que merece. Mas a cara que alguns mereceram - a cara de Rilke, a cara de Sophia, a cara de Renoir, a cara de Matisse, a cara de tantos humilhados e ofendidos, com que nos cruzamos na rua, a cara de James Stewart em "It's a Wonderful Life", a cara da Maria, única pessoa a quem fechei os olhos - não será uma cara só possível por uma mesma razão impossível, sem que elas a vissem e nós a víssemos por graça delas? Não será essa a cara que Deus lhes deu e pela qual vemos Deus? Ingmar Bergman, que não é propriamente, o exemplo de um crente, disse qualquer coisa de parecido quando falou do realizador Viktor Sjöström, que, aos 78 anos, interpretou o papel de Prof. Isaak Borg no filme "Os Morangos Silvestres". "'Os Morangos Silvestres' terminam com um 'close-up' de Isaak Borg na hora da compreensão e da reconciliação. Nesse 'close-up', o rosto de Sjöström brilhava com uma claridade mística, como que reflectindo uma outra realidade e uma outra luz. Os seus olhos estavam muito abertos, sorrindo com ternura. Era maravilhoso. Nunca vi uma expressão tão nobre, tão perfeitamente liberta de qualquer inquietação."
Quem viu o filme sabe que Bergman não exagera. Mas de onde vem essa "outra realidade", essa "outra luz"? Quem vê caras não vê corações, diz-se, e eu nunca achei que fosse exacto, mesmo quando as caras são muito belas e os corações muito negros. Mas, seja ou não seja, ninguém me explicou - olhem bem para o retrato de Rilke - por que é que há caras que nos fazem ver almas, literalmente almas do outro mundo? Nunca ninguém me deu uma explicação que me convencesse. Acredito porque acredito. Como acreditar no que vi se não te visse?

4 - Os não-crentes exasperam-se quase sempre, quando um crente vai chamar "outra realidade" para explicar vidas e mortes em nome de uma moral que para eles nada tem de transcendente. Podem dar-se milhões de exemplos de pessoas que padeceram inenarráveis tormentos, resistiram às piores torturas e morreram na maior dor, por fidelidade a um ideal em que acreditavam e que era totalmente alheio a qualquer prática religiosa. Mas se a morte fosse o fim, porque morrer em nome de outros que jamais conheceremos ou que nem sequer sabemos que virão a existir?
Quem não suporta a explicação pelo mistério, não avança mais do que explicações igualmente misteriosas (o sentido da história, a fraternidade do género humano, a dignidade da pessoa, a consciência moral) para explicar essa inexplicabilidade.
Reli há pouco tempo uma passagem de Buda em que este diz: "Não tenteis medir o Incomensurável com palavras e não tenteis mergulhar a corda das ideias no impenetrável; todo aquele que se interroga, se engana, todo aquele que responde se engana.
"Nada esperai dos deuses cruéis, como nós submetidos à lei do Karma, nada esperai dos deuses que, como nós, nascem, envelhecem e morrem a fim de renascer e não alcançaram libertar-se das suas dores. Tudo de vós mesmo esperai."
E voltei a pensar em mim, vendo a luz pela frincha de uma janela, nestes dias em que uma pequena parte da humanidade - mas a pequena parte a que pertenço - acredita comemorar o nascimento de um Deus no corpo de um Menino, acreditando que esse Menino se fez Homem e morreu na Cruz a perguntar porque tinha sido abandonado.
E, dos Céus à Terra, houve a maior alegria quando foi Natal. E, dos Céus à Terra, cerrou-se a maior tristeza quando Ele, dando um grande brado, expirou. Mas como da Terra pouco se sabe e dos Céus nada se sabe, quem acredita só pode não saber. E, não sabendo, sabê-Lo.

João Bénard da Costa 26 de Dezembro 2003 in Público

segunda-feira, dezembro 22, 2003

Noronha da Costa: Luz Entre Tantas Trevas 

1 - A 15 de Outubro de 1938, a Pirelli de Milão editou "fuori commercio", nas oficinas do Instituto Italiano das Artes Gráficas de Bérgamo, um volume sobre Tiziano, com introduções em latim, italiano, português, alemão, inglês, espanhol e francês, precisamente por esta ordem.
De casa de meus pais, onde entrou em data que não sei precisar, mas que não seria muito distante da data da edição, passou à minha, em 1997, quando se fechou a casa original e originária. Do livro se fizeram 500 exemplares numerados e o que hoje é meu tem o número 362. Da história da edição, da razão dela, nada mais sei. Sei é que, ainda antes do meu primeiro livro de pintura, já abordado em outras crónicas, e que me deram tinha eu 8 anos, foi esse livro encadernado de carneira, com capa onde só figura a maiúsculas douradas o nome Tiziano, o primeiro livro que me mostrou fantásticas figuras e me iniciou à pintura. "Titianus Vecellius, qui Vasari judicio praeter omnes artifices naturae imaginem mirum in modum expressit", era a sentença inicial do texto latino. Na versão portuguesa traduzia-se: "O mais belo e mais perfeito imitador da natureza segundo Vasari."
Minha primeira questão: quem era esse Vasari, autoritariamente citado, ainda antes da informação sobre a data e o local do nascimento do pintor? Não recordo se mo explicaram. Vasari surgiu-me entre as brumas do latim e entre essa bruma ainda hoje o situo. Só muito, muito depois, aprendi que era o autor de "Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti" e que essa obra é o primeiro texto fundamental sobre a história da arte italiana. Tinha um rosto comprido e pálido, uns olhos claros e tristes e uma longa barba negra. As suas "vidas" começam em Cimabue (século XIII) e vão até aos "nossos tempos", tempos dele, tempos do maneirismo, publicadas que foram em 1550, em Florença, tinha Vasari (1511-1574) trinta e nove anos.
Ninguém mais escreveu sobre a pintura italiana desses trezentos anos sem o citar. E se começou com Cimabue, quis "anco nel fine di queste mie fatiche raccórre insiemi e far note al mondo l'opere che la divina bontà mi ha fatto grazia di condurre". Ou seja, ele, como pintor, encerra o livro (os muitos livros) que dedicou a 182 predecessores, não incluindo um vasto etecetera.
Nunca mais se escreveu - nem se podia escrever - uma obra assim. Ninguém mais acreditou, como Vasari, que a "história, em verdade, deve ser o espelho da vida humana, não para narrar os casos acontecidos a um príncipe ou a uma república, mas para registar os conselhos, os caminhos e os artifícios dos homens".
Vasari, para mim, é tanto o cheiro desse livro (falo do "meu" Tiziano), como o exemplo impossível de uma aproximação em que gostaria de me incluir, para pintar narrando ou historiar pintando. Quem me queira acusar de delírios megalómanos tem citação fiável no período precedente. Se quiserem esquecer que eu escrevi "exemplo impossível" e que o lúcido conhecimento dessa impossibilidade impede qualquer outra leitura que não a de um sonho por haver ou a de um sonho para ver.

2 - Mas talvez não seja por acaso que me lembre de Vasari em qualquer museu, em qualquer exposição. A crítica de arte e a história da arte progrediram imenso desde 1550 até aos meus tempos? Não duvido. Mas a fascinação das vidas e dos vivos que essas vidas viveram talvez nunca mais tenha sido igualada. O que aqueles olhos viram outros olhos nenhuns verão como ele o viu. Olhar de pintor sobre a pintura, lançado na escrita, quando as imagens se lhe formaram no pensamento.
Agora, tenho diante de mim uma tela pintada a tinta celulósica, onde dois vultos sobrepostos de mulher (a mesma mulher, outra mulher) olham para mim, cada uma com um olho só. Formam uma espécie de rochedo bifronte, atravessado por um raio de intensa luz. Aos pés da rocha há uma água verdíssima e, à esquerda dela, sombras de árvores. O fundo, que não é mulher, nem sereia, nem esfinge, nem rocha (quero eu dizer, o fundo da parte esquerda da tela), é um crepúsculo dourado velho que tinge vagamente de encarnado parte da água. Para descrever e contar esse quadro era preciso talvez contar a vida de quem o pintou. E chamar-lhe, como Vasari chamou a Tiziano, "o mais belo e perfeito imitador da natureza". Porque é sempre de imitar a natureza que se trata. Luz entre tantas trevas. E estou já a falar de uma tela de Luís Noronha da Costa, aquele que escreveu "Ver é ter-sempre-já-visto". Vasari não recusaria esta fórmula e talvez pressentisse o que Luís Noronha - uma vez mais - chamou "o eterno retorno do mesmo". Do ícone para a paisagem e vice-versa, disse ele falando de um pintor (Rothko) que viveu quatrocentos anos depois de Vasari.

3 - Confuso? É-se sempre confuso quando se vai de memória em memória, de palavra em palavra. Só eu sei porque precisei de Vasari para me chegar a Luís Noronha. Mas, se eu não tivesse visto o livro de Tiziano, se eu não tivesse visto o livro de Vasari, talvez nunca fosse capaz de ver a pintura de Noronha da Costa, como a vi desde que a conheci na Galeria Quadrante, em 1969 (Magritte após Polanski) até que a revi, em 2003, na fabulosa exposição do Centro Cultural de Belém, intitulada Noronha da Costa Revisitado. No reduzido espaço da Quadrante de outrora, ou nas muitas e vastas salas do CCB de hoje, o que senti antes de ver (ou o que vi antes de sentir) foi a mesma luz entre tantas trevas. E tanto falo metaforicamente (a luz da obra de Luís Noronha nas trevas do Portugal de 60 ou nas do Portugal de 2003) como falo literalmente. Toda a pintura de Luís Noronha é uma explosão de luz (lume ou fogo, talvez fosse melhor dito) jorrando de uma treva que em nenhuma tela dele, nem nas mais solares, se dissipa, pois que é o plano que serve de fundo ao plano. Entre a luz e a treva, ou na terceira dimensão que não está entre, mas as projecta, como as imagens cinematográficas, imagens errantes de corpos ou objectos desfocados. Mas foi Luís Noronha quem escreveu - descobri-o agora no notável catálogo da exposição - que "para nós, portugueses, a imagem foi sempre algo de errante, tendo sido a nossa pintura, nos seus raros momentos altos, a impossibilidade de encontrar uma imagem definida". Daí, talvez, a vertiginosa sensação de labirinto que o percurso pelas salas de Belém nos dá. "Só há saída pelo fundo", como escreveu Cristovam Pavia. Mas o fundo, aqui - ou ali - está à superfície, superfície que é a mais funda ilusão dessas imagens de verso e reverso, especulares e espelhares.

4 - Entre a escancarada quantidade dessa obra (ouvi dizer que só no período coberto pela exposição (1965-1983) foram inventariadas quatro mil obras) e a alucinante qualidade das imagens que desfilam em Belém, que escolher?
Não sou tão narcisista que vos vá falar da tela das velas e da tomada de corrente, fonte de luz, que há mais de trinta anos me acompanha a vida, as pessoas perdidas e as pessoas achadas, os mortos e os vivos, na minha casa de Sintra (tanto, tanto tempo) ou, mais recentemente, na casa da Arrábida. Não sou tão fetichista que me fique no prodigioso pórtico dos mil objectos, espécie de "yellow road" para a caminhada até Oz. Não sou tão esotérico que, aberta uma cortina preta, me perca e vos perco (me ache e vos ache) nas redes plásticas e fluorescentes de luz negra, harém imaginário de odaliscas perversas e senhoriais. Não sou tão saudosista que me demore no Nosferatu que o Luís escolheu para presidir à Cinemateca, ou nesse D. Quixote (D. Quixote, será?) que, ao fundo do branco, é fantasma erótico de uma mulher encarnada e loura e de uma mulher nua e azul.
Hesito entre aquela Lola Montes de treva, chamada "Requiem" pelo Ocidente, que tanto invoca Ophuls como Syberberg, andrógina como Ludwig, colegial como Martine Carol, quando se debruça na amurada, na noite que se fez matéria dela. Mas acerco-me do espectro da odalisca de Ingres, filmada pelo Pintor que só vê dela o que nós nunca vimos e "voyeur", num enquadramento flamengo, filma esse desconhecido do conhecido, frontal a nós e oblíquo a ela. Em qualquer deles, como em tantas outras desse prodigioso ano de 1971 "o ecrã cobre todas as superfícies visíveis", como bem nota José Gil num belo artigo do catálogo. Essa série de revisitações à pintura (de Piero a Rafael, de Vélasquez a Vermeer, de Ingres a Delacroix, conduzidas por Böcklin e Gaspar David Friedrich) coadas pelo ecrã e pela persistência da imagem do cinema, é aquela que mais me deixa estupefacto, e que pode justificar a aparente desconexão da minha inicial digressão vasariana.
Mas a exposição não convida à particularização, pelo menos à primeira vista. O que nela se impõe, como em todas as grandes exposições individuais de grandes pintores, é esse sublime visual a que os grandes museus também dão acesso nas suas mais nobres salas.
Evidente, a grandeza. Evidente, a demanda do sublime. Evidente, terminar como terminei o meu texto para o catálogo. "Ninguém em Portugal levou mais longe essa demanda de que Luís Noronha da Costa." Só não julgo, ao contrário dos comissários, que essa evidência seja a partir de agora evidente. Em terra de cegos, só quem tem um olho é rei. Quem vê com os olhos todos, o corpo todo, a alma toda - como Luís Noronha da Costa - só pode estar condenado ao exílio e à maldição.

João Bénard da Costa 19 de Dezembro 2003 in Público

domingo, dezembro 07, 2003

Saudades de Brendel 

1 - Como tantos da minha geração, fui educado, senão a apoucar, a secundarizar Johannes Chrysostomos Wolfgang Gottlieb Mozart, que só aos 14 anos, em 1770, por ocasião da sua primeira viagem a Itália, passou a usar o nome de Wolfgang Amadeo Mozart. Amadeo é a tradução italiana de Gottlieb ("o amado de deuses" "o que ama a Deus" ou, mais prosaica e simplesmente, o "amor de Deus"). Nessa altura passou ele a assinar as suas cartas: "Gottlieb na Alemanha, Amadeo em Itália. De Mozartini."
Mal começo, logo vario. Não faz mal, que de variações vou falar muito, neste variado texto. Dizia eu que fui educado a secundarizá-lo. Havia três grandes, diziam-me: Bach, Beethoven e Wagner. Mozart era música de salão. O menino-prodígio. As cabeleiras empoadas. Os minuetes.
Tudo mudou - tão radicalmente mudou - em 1956, ano dos meus 21 anos e das comemorações do segundo centenário do nascimento de Mozart. Eu frequentava o 2º ano do curso que então se chamava Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras, à época habitante do velho Convento de Jesus. Sei lá porquê, achei-me metido numa comissão que, nessa faculdade, assumiu a organização da efeméride. Subitamente - comigo foi sempre subitamente - Mozart, que até então seguira distraído em concertos, óperas e nalguns poucos discos, fez-me cair do cavalo abaixo e revelou-se-me como o maior. O maior dos maiores, entre todos os mortais nascidos depois de Cristo.
Acho que tudo começou em S. Carlos, com as récitas de "Le Nozze di Fìgaro" K. 492 e de "Don Giovanni, ossia: Il Dissoluto Punito", K.527, dirigidas por Alexander Krannhals. Erich Kunz no Fìgaro e no Leoporello. Hilde Zadek na Condessa e na Donna Anna. Magda Gabory no Cherubino e na Zerlina. O "Lá ci darem la mano", cantado por Ernest Blanc e Magda Gabory, confunde-se-me na memória e na imaginação com as variações para piano "Ah vous dirais je maman", tocadas por Clara Haskil, num velhíssimo disco amarelo da Deutsche; com a ária K. 21 (de 1765, tinha ele 9 anos) "Va dal furor portata", numa gravação de árias de óperas por Leopold Simoneau para a Phillips que nunca mais consegui encontrar; com os Concertos para piano e orquestra K. 466 e K. 503 (os nº 20 e 25) com Gieseking ao piano, ou no Rondó em fá para piano, K. 494, que chegou até mim tocado por Carl Seeman.
Desse mesmo ano data a vera fundação da minha discoteca Mozart e, a revelação, pelo Fernando Gil, numa noite em casa dele, do livrinho de Jean-Victor Hocquard da colecção "Solfèges" das Éditions du Seuil. Hocquard era um "terrorista", de um terrorismo afim ao dos "Cahiers du Cinéma" que eu descobri pelos mesmos maravilhosos anos 50. O livro tinha a forma de um diálogo entre M ("o mozartiano fervoroso") e A ("o amador esclarecido"). O segundo era céptico e relativista. O primeiro fervia de paixão. "Mozart é o único deus e você o seu profeta (...). Já reparei que os fanáticos de Mozart são quase todos como você: ninguém mais existe para vocês. Só o divino Wolfgang", dizia o "amador". "A música de Mozart é um jardim secreto onde se entra. Mas ninguém pode prever nem quando nem como se abrirá a porta, nem mesmo se ela se abrirá. A chave está no interior (...). É uma espécie de predestinação (...). Não se é apenas marcado por Mozart. É-se marcado para Mozart."
Mal sonhou o Fernando Gil como eu ia decorar páginas inteiras desse livro. Era um dos predestinados. Estava marcado para Mozart. Desde aí, li quase tudo e ouvi tudo da imensidade de uma obra com cerca de 800 títulos (os 623 do catálogo de Köchel, mais os quase duzentos outros acrescentados depois). Vinte anos mais tarde, em 1976, dediquei um ano da minha vida a ouvir tudo o que nessa altura estava gravado, do K. 1 ao K. 623, mais os suplementos de Alfred Einstein, assim mesmo por ordem cronológica, com notas e comentários, num monumento "radiofónico" em que fui o único emissor e o único receptor, com fanática escolha dos intérpretes de eleição.

2 - No livro de Hocquard, havia uma discografia antológica, recomendando os intérpretes predestinados e expurgando outros, celebérrimos, mas que o não eram. Não descobri nunca uma falha de gosto ou um gosto que não coincidisse com o meu. Mas havia um capítulo que, dentre todos, me fascinou. Foi aquele a que Hocquard chamou "obras de pura intimidade". Era uma lista de peças, relativamente desconhecidas, que o ouvinte podia escutar com indiferença "faute de l'attention recueillie qui seule permet d'être sensible au dépouillement final de l'art mozartien". Foi essa lista que me revelou os Nocturnos Vocais de 1783, os Canon Vocais de 1788 (e os meus filhos mais velhos iam para a cama ao som do Bona Nox, K. 561), as Danças Alemãs, K. 571, sobretudo a última, o Adagio-Rondó em dó menor, para harmónica, flauta, oboé, alto e violoncelo, K. 617, o "Lied" maçónico "Lasst uns", K. 623 a, etc., etc., etc.
Devo a Hocquard a descoberta de Teresa Stich-Randall, sobretudo no "Et Incarnatus" do Credo da Missa em dó menor, K. 427, como lhe devo a dos grandes pianistas mozartianos, para chegar ao que aqui me trouxe, que se vai fazendo tarde e o espaço começa a apertar: Edwin Fischer, de todos o maior, Arthur Schnabel, Clara Haskil, Badura-Skoda, Wanda Landowska, Lilli Krauss, Jörg Demus, Ingrid Haebler e alguns poucos mais.
À excepção de Badura-Skoda e de Demus, todos deram há muito a alma ao criador, mas ainda hoje continuo a ouvir a obra de Mozart para piano por esses intérpretes, sem descobrir quem os tenha suplantado ou igualado na segunda metade do século findo ou neste. Nem uma excepção? Uma e uma só. Começou a carreira alguns anos antes do meu ano de 56, mas só nos anos 60 atingiu a celebridade e só nos anos 70 o conheci ao vivo e em discos. Chama-se Alfred Brendel e a sua última visita a Lisboa data de sábado passado, 29 de Novembro, no Grande Auditório da Gulbenkian. Brendel é o único intérprete mozartiano tão "predestinado" como os que acima citei, o único que eu conheço, tocado pela Graça com G muito grande, essa Graça que com Mozart se funde. Duas vezes gravou os 27 concertos para piano, gravou também a integral das sonatas e esses discos Phillips são os únicos a pôr ao lado do que nos ficou de Fischer, Schnabel ou Clara Haskil. Tão grande como.

3 - Brendel, como muitos saberão, não é só o maior intérprete mozartiano vivo. De Beethoven, de Schubert, se não é o maior, é um dos maiores. Entre os meus máximos momentos musicais está a "Hammerklavier" ouvido o ano passado em Salzburgo, como de resto contei numa destas crónicas. Infelizmente, o único outro português então presente não o pode agora confirmar, tragado que está por sanhas cruéis e terrivelmente injustas.
O programa de Brendel em Lisboa foi de uma inteligência prodigiosa. Abriu com algumas das Bagatelas e Rondós de Beethoven para piano, que, nas mãos de Brendel, mais mágicas foram. Prosseguiu com a Sonata em lá maior, K. 331 de Mozart, de todas a mais "perigosa", como já vou explicar. De Mozart passou a Schubert, com a "incompleta" D. 840, a mais abissal e nocturna das sonatas de Schubert. E terminou, como começara, com Beethoven e com a sonata da decisiva transição, que é a "opus" 22. Em extra, voltou a Schubert, para uma das valsas sentimentais.
Mas é em Mozart - evidentemente - que me fixo para acabar. Só lhe chamei a mais "perigosa", porque o último mandamento da K. 331 é o celebérrimo "Allegreto: alla turco", vulgo "Marcha turca", que, de todas as peças de Mozart, devido à sua aparente simplicidade, é a mais tocada e assassinada pelos aprendizes de piano. Grande parte dos preconceitos antimozartianos radicam nela.
Foi também com Hocquard que aprendi que só um pianista - Edwin Fischer - foi capaz de perceber que, para além da "leveza" desse andamento, havia nele uma pureza e uma "luz" que são o próprio cerne da música de Mozart, que escreveu essa sonata em Julho de 1778, em Paris, pouco antes ou pouco depois da morte da mãe, num dos momentos mais trágicos da sua vida.
Com um começo inusitado - um andamento lento com variações, sobre um "Lied" do Sul da Alemanha, "Rechte Lebensart" -, esta sonata, para mim, sempre foi um adeus à infância, uma espécie de "never more" ao som das canções que, em criança, a mãe lhe terá cantado. O modo como Brendel separou e destacou cada uma das variações, sem em nada agravar o tom, repassou da nostalgia e saudade. E, quando chegou à "marcha turca", eu nunca ouvi, depois de Fischer, um tal milagre. Como um dia escreveu Bruno Walter, tudo foi tão alegre, tão alegre que dá vontade de chorar. A "pura intimidade" foi atingida aí, nesse momento entre todos mágico, por aquele homem com cara de desenho animado e de mãos de duende, possuído, como Mozart, pelo mesmo espírito de infância e pela mesma infinita saudade do que não mais voltará.
Até hoje, só de disco sabia o que podia ser esse andamento. Graças a Brendel soube-o em carne e osso, dele e minha. De agora em diante, a todas as minhas saudades juntam-se as saudades de Brendel. Tenho o disco? Tenho. Mas não é, não, a mesma coisa. As saudades, se sempre se repetem, nunca se repetem como foram ou como são.

João Bénard da Costa 5 de Dezembro 2003 in Público

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